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Desde cedo, Fernando Pessoa cultivou um diálogo íntimo com a sua biblioteca, deixando nos seus livros sublinhados, marcas e anotações que
viriam a constituir uma das bases da sua poética: o desdobramento.
Quando voltou definitivamente a Lisboa em Setembro de 1905, Pessoa trouxe consigo mais de 30 livros, a maior parte deles utilizados no
âmbito da sua escolaridade em Durban (fig. 1; fig. 2; fig. 3), outros adquiridos fora desse contexto, provavelmente nos meses precedentes
ao regresso à cidade natal (fig. 4; fig. 5).
Fig. 1. Casa Fernando Pessoa 8-643 MN. «Ao Fernando Pessôa, | meu ilustre camarada | e amigo, of[ferece] | Teixeira de Pascoaes».
Fig. 2. CFP 8-37. «F. A. N. Pessôa. | Durban High School. | February 1904. | Form VI».
Fig. 3. CFP 8-89. «F. A. N. Pessôa, | February 1904. | Durban High School.| Form VI»
Fig. 4. CFP 8-172. «F. A. N. Pessôa».
Fig. 5. CFP 9-52. «F. A. N. Pessôa. | F. A. N. Pessôa».
A partir de alguns destes primeiros livros, Fernando Pessoa pensou em projectos e certos textos para suas primeiras figuras literárias inglesas. Em 1903, o pré-heterónimo David Merrick assina como proprietário o livro Information Wanted and other Sketches de Mark Twain (fig. 6) e o seu irmão, Lucas Merrick, coloca o seu nome em The Adventures of Joseph Andrews de Henry Fielding (fig. 7).
Fig. 6. CFP 8-554. «David Merrick | 1903».
Fig. 7. CFP 8-190. «Sidney Parkinson Stool. | 1903 | 1903 | Lucas Merrick | 1903 | F. A. N. Pessôa».
Dado que os irmãos Merrick estavam vocacionados para escrever prosa com uma vertente humorística, não é de todo arbitrário o facto de eles
assinarem estes volumes, já que a primeira obra inclui sátiras e numerosas cenas espirituosas e a segunda constitui uma paródia do romance
sentimental
Pamela
de Samuel Richardson. Como podemos observar, o livro de Fielding teve três proprietários sucessivos. Mas dos dois pré-heterónimos, quem
terá sido o primeiro? Seguramente Lucas, já que o seu nome, escrito no cabeçalho de uma lista de contos (entre os quais encontramos certos
títulos que derivam da leitura do romance de Fielding), será substituído pelo de Sidney Parkinson Stool (cf. BNP/E3, 153-10
r
; Fernando Pessoa,
Cadernos
, ed. de Jerónimo Pizarro, Lisboa, INCM, 2009, vol. I, p. 113), nome de maior afinidade com o espírito do romance já que nele abundam os nomes
cómicos («stool» tem uma acepção escatológica).
A articulação leitura-criação ainda se tornará mais evidente no caso dos pré-heterónimos Charles Robert Anon (fig. 8) e, sobretudo,
de Alexander Search (fig. 9; fig. 10; fig. 11), este último proprietário de 25 livros.
Fig. 8. CFP 8-105. «F. A. N. Pessôa. | C. R. Ânon».
Fig. 9. CFP 8-177. «Alexander Search. | December, 1906».
Fig. 10. CFP 8-378. «Alexander Search».
Fig. 11. CFP 2-66. «Alexander Search».
Numerosos são os exemplos de afinidade entre as obras que os pré-heterónimos possuíram e os textos que foram criando, um dos mais flagrantes sendo o poema «Regret», assinado por Search, proprietário de The Poetical Works of Lord Byron (fig. 12):
Primeira estrofe do poema de Lord Byron:
I WOULD I were a careless child,
Still dwelling in my Highland cave,
Or roaming through the dusky wild,
Or bounding o'er the dark blue wave;
The cumbrous pomp of Saxon pride,
Accords not with the freeborn soul,
Which loves the mountain's craggy side,
And seeks the rocks where billows roll.
Primeira estrofe do poema de A. Search:
I would that I were again a child
And a child you sweet and pure,
That we might be free and wild
In our consciousness obscure;
That we might play fantastic games
Under trees silent and shady,
That we might have fairy-book names,
I be a lord, you a lady.
Fig. 12. CFP 8-82. «Alexander Search».
Esta abordagem criativa da leitura, que não se limita a uma correlação inter-textual, aponta também para uma sensibilidade própria
de Pessoa relativamente a questões de autoria. Vários livros da sua biblioteca pertencentes a pré-heterónimos são de autoria controversa
ou de autores que, por sua vez, recorreram a pseudónimos ou que decidiram publicar anonimamente: Mark Twain,
por exemplo, foi o
pen name
de Samuel Langhorne Clemens; Chatterton assinou parte da sua obra como tendo sido criada por um monge do século XV;
Prométhée enchainé
de Ésquilo era desde o século XVIII um drama de autoria incerta; Hégésippe Moreau utilizou o
nom de plume
de Alphonse Dardenne; e
Supernatural Religion: an Inquiry into the Reality of Divine Revelation,
de Walter Cassels, foi publicado anonimamente em 1874, gerando especulação sobre a identidade de seu erudito autor.
Outra das particularidades, não menos digna de atenção, diz respeito ao trabalho dos pré-heterónimos e as línguas estrangeiras.
Foi a partir da sua biblioteca que Pessoa começou a desenvolver o que viria a ser a sua terceira língua de escrita: o francês.
Quem se lançaria propriamente nesta aventura seria Alexander Search ? leitor, juntamente com Pessoa, de algumas passagens de
Entartung
de Max Nordau na tradução francesa de Auguste Dietrich (
Dégénérescence
). Nas notas de leitura ainda existentes no espólio pessoano, o nome de Search aparece à margem de certos trechos, como se este
pré-heterónimo fosse, por vezes, o leitor de Nordau. Esta leitura, que começou em Maio de 1907, terá conduzido Pessoa a fazer de
Search um escritor-leitor também de língua francesa.
Quando olhamos para a biblioteca particular de Search, os livros em francês
apresentam-se em maior quantidade (10), seguidos dos livros em inglês (9), em português (4) e em espanhol (2). A avidez crescente
por livros franceses poderá estar ligada ao facto de Search tencionar escrever poesia nesta língua. No verso de um poema redigido
em francês, e com a mesma caneta, encontramos a seguinte anotação: «French Verses | « A. Search » | « Alexander Search ») (BNP/E3, 50B
1
-59
v
).
Se para escrever obras de humor, como no caso dos irmãos Merrick (e no de Sidney Parkinson Stool), requeria, antes de mais, que eles
fossem leitores deste tipo de obras, um livro de versos franceses obrigava a uma leitura desta natureza. Quando olhamos para o volume
do bretão Auguste Brizeux, do qual Search era proprietário (fig. 13), por exemplo, e alguns versos que este pré-heterónimo escreveu,
encontramos a íntima relação entre o leitor e o escritor.
Fig. 13. CFP 8-68. «Alexander Search».
Nada é um acaso no sistema pessoano e este desdobramento inicial criado no seio da biblioteca leva-nos para um dos primeiros intentos que Pessoa exprime para criar uma rede de interligações entre os diferentes pré-heterónimos. Se Alexander Search é proprietário do livro de António Cortón sobre o poeta espanhol José de Espronceda (fig. 14), por exemplo, é porque lhe tinha sido dada a tarefa de analisar a tradução que o seu irmão, Charles James Search, empreenderá de El Estudiante de Salamanca (BNP/E3, 48C-5 r ; Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Lisboa, Estampa,1990, vol. II, pp. 196-197).
Fig. 14. CFP 9-21. «Alexander Search».
Com Alexander Search, por volta de 1910, cessaria a atribuição de propriedade de livros aos pré-heterónimos. Mas antes de pôr fim a este mecanismo poético, Pessoa ainda criará um pseudónimo para esta personagem literária: William Alexander Search ? nome que figura na folha de guarda de um volume sobre filosofia médica (fig. 15) (cf. BNP/E3, 14 2 -55 v ; Fernando Pessoa, Livro do Desasocego , ed. de Jerónimo Pizarro, Lisboa, INCM, 2010, p. 1006).
Fig. 15. CFP 1-169 LMR. «William Alexander | Search».
Paralelamente à atribuição de livros a alguns pré-heterónimos ingleses, Pessoa assinará muitos dos seus volumes com os dois apelidos, «Nogueira Pessôa» (este último com acento circunflexo) (fig. 16):
Fig. 16. CFP 8-43. «F. Nogueira Pessôa».
Fig. 17. CFP 8-7. «Fernando Pessôa».
Nos inícios da década de 1910, o apelido materno deixará de ser utilizado (fig. 17) e a 4 de Setembro de 1916, como escreve Pessoa em carta a Armando Côrtes-Rodrigues, ocorrerá uma outra mudança ? que, embora irrelevante para a sua poética, não é de negligenciar no momento de precisar as datas de certas leituras: «vou fazer uma grande alteração na minha vida: vou tirar o acento circunflexo do meu apelido. [...] [V]ou publicar umas cousas em inglês, acho melhor desadaptar-me do inútil ^, que prejudica o nome cosmopolitamente» (Armando Côrtes-Rodrigues, Cartas de Fernando Pessoa a Côrtes-Rodrigues, , Lisboa, Confluência, 1945, p. 79) (fig. 18).
Fig. 18. CFP 1-130. «Fernando Pessoa».
Patricio Ferrari