Anotações

No livro Pioneer Humanists de John Mackinnon Robertson, o autor mais representado da biblioteca particular de Fernando Pessoa, existe uma passagem anotalada que poderíamos considerar como paradigmática relativamente à construção da obra do escritor português: «No seu diário de juventude, ele [Edward Gibbon] escreve que a leitura de um livro costumava abrir-lhe o caminho para muitos pensamentos» (Fig. 1).

Fig. 1. Casa Fernando Pessoa 1-129; p. 291. Fig. 1. Casa Fernando Pessoa 1-129; p. 291.
Fig. 1. Casa Fernando Pessoa 1-129; p. 291.

O heteronimismo é um cunho pessoano, é certo, mas quando nos detemos nos livros de Pessoa, nas marcas à margem, nos sublinhados e no grande número de anotações que ele aí deixou, percebemos que este se reveste de traços nascidos no contexto das suas leituras ? traços de uma extrema singularidade que, no entanto, foram gradual e laboriosamente desenvolvidos no contacto com numerosas vozes de poetas, ensaístas, filósofos, críticos com as quais dialogou a partir do círculo da sua biblioteca.
Na biografia de John Keats, por exemplo, Pessoa marca uma passagem do poeta romântico inglês, na qual este defende que o intelecto do poeta será fortalecido se a sua mente não se fixar, tornando-se passagem para todos os pensamentos (Fig. 2).

Fig. 2. CFP 9-20, pp. 73-74. «Ch[aracter]». Fig. 2. CFP 9-20, pp. 73-74. «Ch[aracter]». Fig. 2. CFP 9-20, pp. 73-74. «Ch[aracter]».
Fig. 2. CFP 9-20, pp. 73-74. «Ch[aracter]».

Sintomaticamente, neste mesmo livro, Pessoa marcará também as seguintes palavras de Keats sobre a definição do poeta: «O poeta é a coisa menos poética de toda a existência porque não tem identidade; ele está continuamente no lugar de outro, preenchendo outro corpo» (Fig. 3).

Fig. 3. CFP 9-20, pp. 215-216. «Infirmity of will». Fig. 3. CFP 9-20, pp. 215-216. «Infirmity of will».
Fig. 3. CFP 9-20, pp. 215-216. «Infirmity of will».

Numerosas serão as passagens marcadas e/ou comentadas que remetem para o desenvolvimento da heteronímia. Destaque-se o comentário de Jules Huret sobre Les Palais nomades de Gustave Kahn, também anotalado por Pessoa, e onde este livro de versos é comparado com «um drama que se passa numa consciência, com uma personagem principal que se multiplica numa multidão de personagens que não passam de facetas das suas ideias [...] personagens que evoca como interlocutores» (Fig. 4).

Fig. 4. CFP 8-31, p. 118. «ex. | N[ote]». Fig. 4. CFP 8-31, p. 118. «ex. | N[ote]».
Fig. 4. CFP 8-31, p. 118. «ex. | N[ote]».

Contudo, as marginalia de Pessoa não estão apenas associadas à sua poética heteronímica; entre elas encontram-se, por exemplo, anotações com um tom provocante (Fig. 5; Fig 6):

Fig. 5. CFP 8-78, p. 52. «quem é | este typo!». Trad.: «who is this guy!». Fig. 5. CFP 8-78, p. 52. «quem é | este typo!». Trad.: «who is this guy!».
Fig. 5. CFP 8-78, p. 52. «quem é | este typo!». Trad.: «who is this guy!».

Fig. 6. CFP 8-437, p. 67. «qui serait | imbécile». Trad.: «who would be an imbecile». Fig. 6. CFP 8-437, p. 67. «qui serait | imbécile». Trad.: «who would be an imbecile».
Fig. 6. CFP 8-437, p. 67. «qui serait | imbécile». Trad.: «who would be an imbecile».

ligações inesperadas (Fig. 7):

Figs. 7. CFP 0-17, p. 176 e folha de guarda posterior. «176 / O segredo é um elemento da publicidade». Trad.: «Secret is an element of advertising». Figs. 7. CFP 0-17, folha de guarda posterior. «176 / O segredo é um elemento da publicidade». Trad.: «Secret is an element of advertising». Figs. 7, CFP 0-17, folha de guarda posterior. «176 / O segredo é um elemento da publicidade». Trad.: «Secret is an element of advertising».
Figs. 7. CFP 0-17, folha de guarda posterior. «176 / O segredo é um elemento da publicidade». Trad.: «Secret is an element of advertising».

traduções, em diferentes línguas, nas margens (Fig. 8):

Fig. 8. CFP 8-137, p. 5.«Que de pavor me achara o coração». Trad.: «which had with consternation pierced my heart,» [Longfellow]. Fig. 8. CFP 8-137, p. 5.«Que de pavor me achara o coração». Trad.: «which had with consternation pierced my heart,» [Longfellow].
Fig. 8. CFP 8-137, p. 5.«Que de pavor me achara o coração». Trad.: «which had with consternation pierced my heart,» [Longfellow].

e nas entrelinhas (Fig. 9):

Fig. 9. CFP 8-583, p. 145. «Não tinha a tunica vermelha | Vermelho é o sangue e o vinho | A pobre morta a quem amou». Fig. 9. CFP 8-583, p. 145. «Não tinha a tunica vermelha | Vermelho é o sangue e o vinho | A pobre morta a quem amou».
Fig. 9. CFP 8-583, p. 145. «Não tinha a tunica vermelha | Vermelho é o sangue e o vinho | A pobre morta a quem amou».

breves comentários de teor literário (Fig. 10):

Fig. 10. CFP 8-442, p. 33. «Italics and similar impress-|ive devices, of the printer, are | entirely out of place in poetry, if not | in prose. || Impressiveness should | be caused as by | devices genuinely | poetic. || horresco legens. || Quotations, such as here | in 3 places, in inverted | commas are inadmissible | in poetry». Fig. 10. CFP 8-442, p. 33. «Italics and similar impress-|ive devices, of the printer, are | entirely out of place in poetry, if not | in prose. || Impressiveness should | be caused as by | devices genuinely | poetic. || horresco legens. || Quotations, such as here | in 3 places, in inverted | commas are inadmissible | in poetry».
Fig. 10. CFP 8-442, p. 33. «Italics and similar impress-|ive devices, of the printer, are | entirely out of place in poetry, if not | in prose. || Impressiveness should | be caused as by | devices genuinely | poetic. || horresco legens. || Quotations, such as here | in 3 places, in inverted | commas are inadmissible | in poetry».

e também alterações e acrescentos aos seus próprios textos já editados, como por exemplo a Mensagem (Fig. 11) ou o seu prefácio a Acrónios de Luís Pedro (Fig. 12).

Fig. 11. CFP 8-435, p. 16. «Os Deuses vendem quando | gloria com». Trad.: «Bestowing the Gods do but sell. | One buys glory with misfortune». Fig. 11. CFP 8-435, p. 16. «Os Deuses vendem quando | gloria com». Trad.: «Bestowing the Gods do but sell. | One buys glory with misfortune».
Fig. 11. CFP 8-435, p. 16. «Os Deuses vendem quando | gloria com». Trad.: «Bestowing the Gods do but sell. | One buys glory with misfortune».

Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há». Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há». Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há». Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há». Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há».
Figs. 12. CFP 8-426, p. 5 «clara | de | accentual | rhythmada por»; p. 6 «em relação às outras | grau | ia | tinha | veis || accentual | ,»; p. 7 «que salvo a rima é»; e p. 8 «há».

Urdindo a sua obra em grande parte a partir de livros, talvez nenhum o tenha inspirado tanto como os Rubáiyát de Omar Khayyám na versão inglesa de Edward FitzGerald. Como se pode depreender de uma lista de livros feita por Pessoa nos seus tempos escolares em Durban (cf. BNP/E3, 27 21 L4-19), este título era-lhe conhecido desde muito cedo. Ao longo da sua vida, foram várias as edições através das quais contactou com versos deste autor persa. Entre os volumes conservados na sua biblioteca particular encontram-se quatro com poesia de Khayyám: The Oxford Book of Victorian Verse (cf. CFP 8-405), antologia publicada em 1912, onde foram incluídos alguns poemas de Omar Khayyám na secção dedicada ao poeta e tradutor Edward FitzGerald; e a colectânea The Golden Treasury of the Best Songs and Lyrical Poems in the English Language (cf. CFP 8-409), numa reedição de 1926. Enquanto as duas selecções dos Rubáiyát nestas antologias não apresentam anotações, é no Omar Khayyám The Poet por Thomas Hunter Weir (cf. 8-662 MN), levado ao prelo também em 1926 e no Rubáiyát of Omar Khayyám (Fig. 13), reimpresso depois de Março de 1928, que Pessoa deixará marginalia.

Fig. 13. CFP 8-296, página de rosto. «Ha cansaços profundos | da alma ? dos que | excedem todas as | esperanças e todos | os desejos ? que | teem material | expresso n'estes poe-|mas». Trad.: «There are fatigues of the soul ? of those that exceed all hopes and all longings ? that have matter expressed in these poems». Fig. 13. CFP 8-296, página de rosto. «Ha cansaços profundos | da alma ? dos que | excedem todas as | esperanças e todos | os desejos ? que | teem material | expresso n'estes poe-|mas». Trad.: «There are fatigues of the soul ? of those that exceed all hopes and all longings ? that have matter expressed in these poems».
Fig. 13. CFP 8-296, página de rosto. «Ha cansaços profundos | da alma ? dos que | excedem todas as | esperanças e todos | os desejos ? que | teem material | expresso n'estes poe-|mas». Trad.: «There are fatigues of the soul ? of those that exceed all hopes and all longings ? that have matter expressed in these poems».

De facto, entre os mais de 1300 títulos que hoje compõem a sua colecção particular, este último volume é claramente o mais anotado, cujas marginalia - quer pela sua quantidade, quer pela sua variedade (comentários, poemas, traduções, entre outros) ? revelam a multiplicidade de Pessoa enquanto escritor-leitor, expondo sobretudo esse traço inerente à sua obra: a fragmentariedade.

Patricio Ferrari